terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Sete Ciganos - 40


Os ciganos chegam a um acampamento montado perto da cidade, saltam do carro e começam a se dirigir para ele. Indiara e Indira caminham um pouco atrás de Shalom e Sofia:

- Ele tem família, Indiara – pergunta Sofia.

- Já foi casado, a mulher morreu e os filhos estão pelo mundo.

Vão se aproximando do acampamento e são vistos por alguns ciganos.

- Há quanto tempo o conhece, Indiara? – Indaga Shalom e não obtém resposta.

Ao olhar para trás, o casal constata surpreso que as duas desaparecerem:

- Para onde elas foram?! – Pergunta Shalom se arrepiando – Estavam aqui agora!

- Shalom, acho que estávamos falando com fantasmas.

No exato momento, o cigano velho que sempre apareceu em seus sonhos os aborda:

- Boa tarde!

Eles o olham surpresos e com alegria, o anfitrião também reage:

- São vocês?!

- É o senhor?! – Fala Sofia.

Ele acolhe os dois num abraço e chora emocionado:

- Por isso que elas vieram hoje.

- Elas quem? – Pergunta Shalom.

- Indiara e Indira – o cigano responde.

- Elas estiveram conosco!...

Pedro olha-o boquiaberto:

- Também?!

- Sim. Foram elas que nos trouxeram até aqui e depois sumiram – diz Sofia.

Pedro dá uma gargalhada gostosa:

- E as pessoas ainda dizem que perdem alguém quando um ente querido morre...

- Que quer dizer com isso?

- Meu jovem, Indiara e Indira, são minha mulher e minha filha que morreram há alguns anos. Tenho outros filhos espalhados por aí. Sempre que preciso, elas aparecem ou para mim, ou para alguém que pode me auxiliar de alguma forma, mas elas só podem vir entre o meio-dia e o pôr-do-sol. Depois dessa hora, elas voltam para o outro mundo.

- Então foi por isso que não aceitaram comer conosco e que era necessário chegarmos ante do sol ir embora – deduz Sofia.

- Mas venham, vamos, vocês são bem-vindos a minha casa. Tem uma sopa quentinha para nós tomarmos e sei que estão bem vivos – Pedro novamente gargalha e vai conduzindo o casal enquanto outros ciganos os olham curiosos.

O velho apresenta Shalom e Sofia a outros ciganos e eles os acolhem com calor e amizade. Outros ciganos se aproximam da barraca, também conhecem os visitantes, logo a mesa se enche de comida e bebida, conversas e curiosidades, lembranças e sonhos, histórias, aventuras e lições.

Mais tarde acendem uma fogueira e boa parte dos ciganos se senta ao redor dela. Um jovem e belo cigano chamado Tayrone põe-se a cantar e tocar seu violão e os presentes se deliciam com a música, a voz, o vinho, a carne assada e o encanto da noite.

Está tarde quando restam próximos à fogueira apenas Sofia, Shalom e Pedro:

- Bom, meus meninos. Enfim, sós.

- É, Dom Pedro – brinca Sofia. – Há quanto tempo está no bando?

- Tem um ano. Vivo de bando em bando. Sou curandeiro, filho de um cigano com uma índia, só pode dar isso mesmo – o velho solta um flato sonoro e cai na gargalhada. O casal gargalha também – Adoro peidar. Acho que é uma das expressões de liberdade mais autênticas.

- É muito bom! – Exclama Shalom e faz o mesmo. Os três riem.

- Agora só falta você, cigana bonita.

- Não é nada bonito para uma dama ficar se soltando assim na vista de dois cavalheiros – fala Sofia com certa ironia e solta gases que superam os dos dois em barulho.

Os três riem.

- Conte-nos sua história, Pedro – pede Shalom.

- Nasci no Amazonas. Meu pai pertencia a um bando que estava passando por Manaus. Ele se encantou pela floresta e quando visitou uma aldeia indígena, se encantou por minha mãe e ela por ele. Foram para o mato, fizeram uma boa safadeza e depois meu pai foi pedir a mão dela em casamento. Minha mãe era sobrinha do Pajé, que a princípio, não quis deixá-la se casar com o cigano, pois sabia que se isso acontecesse, ela partiria com ele e não seria mais sua sucessora. O Pajé já era velho, não era casado nem tinha filhos e depositou todas as esperanças de sucessão na sobrinha, que segundo ele, era uma Xamã. Mesmo triste com o fato de não poder partir com o cigano do qual ela tanto gostara, Naipi decidiu continuar na aldeia por causa do compromisso que havia selado com o Pajé desde que era uma curumim. Hugo, meu pai, quis ficar na aldeia, mas por pressão de alguns ciganos machistas que diziam que era a mulher que tinha de seguir o homem, ele, jovem e influenciável, deixou sua amada e seguiu com o bando.

“Dois meses depois, o Pajé percebeu que minha mãe estava grávida e lhe submeteu a uma prova para testar o seu caráter. Ele lhe chamou para conversar e antes de qualquer coisa, lhe mostrou uma erva e disse-lhe o seguinte:

- Esta erva faz deitar curumim fora. Você não pode ser a Xamã da tribo se tiver um filho. Deveria ter se prevenido antes de se entregar ao homem que viaja o mundo. Eu lhe ensinei como. Agora, Naipi, é hora de escolher ou o seu filho, ou o seu destino de Guia Espiritual dos seus Irmãos.

Minha mãe ficou atônita e perguntou ao tio:

- Posso lhe dar essa resposta amanhã?

E ele implacável, respondeu:

- Não, Naipi. Deve ser agora.

Ela pensou por uns instantes e com os olhos cheios da água, disse ao meu tio-avô:

- Tupã é amor. Não compreendo porque não posso ser Xamã e Mãe. Como Mãe, sou a portadora da vida, as marés e Jaci, a Lua, funcionam junto comigo. Meu poder não vem de você Pajé nem de ninguém a não ser de mim mesma e por amor a esse Curumim que trago em minha barriga, rompo com a promessa que lhe fiz de ser sua discípula, renuncio o posto para o qual fui treinada até hoje e aceito o destino que me aguarda, assumindo toda a responsabilidade da minha decisão.

Então o Pajé caiu de joelhos ante minha mãe e beijou-lhe os pés, dizendo que poderia morrer em paz, pois ela mostrou o requisito principal para ser uma Sacerdotisa: um amor tão puro e imenso que ultrapassa qualquer regra, qualquer convenção, qualquer pacto por mais importante e crucial que ele seja.

Naipi sabia que um dia reencontraria Hugo e enquanto esse dia não chegava, ela se possuía da própria saudade e a compensava sabendo que eu, o vínculo dela com o cigano, era uma espécie de concretude daquele elo.

Os meses passaram e Pajé continuou ensinando coisas a ela e com ela também já aprendia coisas.

Até que um dia, minha mãe já estava no sétimo mês de gravidez, quando meu pai retornou à aldeia. Havia deixado o bando e resolvido viver com o grande amor da vida dele.

Quando viu que ela estava grávida, disse-lhe emocionado:

- Santa Sara! Esse menino aí dentro me apareceu num sonho, me falou que era sangue do meu sangue, que era meu filho e que seu nome era Pedro. E tem mais: foi ele quem mandou eu vir embora.

Com certa dificuldade, mas perseverança, Hugo foi se adaptando à vida na aldeia e se casou com Naipi.

Eu nasci, o Pajé fez a Grande Viagem, e minha mãe se tornou a Xamã da tribo. Foi decisão dos meus pais criarem-me com os princípios de sabedoria indígena e cigana e me falarem desde cedo que se eu quisesse, um dia, poderia experimentar viver num bando de ciganos.

Quando cresci, resolvi deixar a aldeia por um tempo e experimentar a vida cigana. Resultado: estou aqui até hoje.

De vez em quando vou ver meus amigos e parentes índios e me divirto muito estando com eles. Afinal, foram neles que encontrei meu porto seguro” .

- Que história bonita, Pedro! – Exclama Sofia – Então quer dizer que é um Curandeiro agraciado pela sabedoria cigana e pela sabedoria indígena.

- Dizem – fala Pedro acendendo um cachimbo.

- Que cheiro gostoso! – Comenta Shalom.

- Eu mesmo preparo esse fumo com ervas secas aromáticas. Não é tóxico. Os índios fumam cachimbo quando querem fazer uma prece. Enquanto soltam a fumaça, fazem seus pedidos e agradecimentos que sobem com ela até o infinito. A fumaça sai impregnada do nosso hálito, da nossa essência que a carrega com o que mais desejamos.

- Posso? – Pede Sofia.

- Claro que pode.

Ele lhe dá o cachimbo:

- Pense numa coisa que você deseja muito.

A cigana fecha os olhos e se concentra. Pensa em reunir os outros quatro ciganos e sente um amor tão grande por eles, que se comove. Ela abre os olhos e fuma o cachimbo do índio-cigano. Traga a fumaça e sente-se um pouco tonta. Sorri e oferece o cachimbo a Shalom, que o aceita, pegando-o. Ele também fecha os olhos, mas não pensa o mesmo que ela. Deseja ver o filho novamente e poder ficar mais tempo com ele. O cigano solta a fumaça e em Brejões, Gilberto que está deitado em sua cama e meditando se é na igreja que deve estar ou não, sente uma vontade interna de abandonar tudo e sair pelo mundo. Vê-se diante de uma pirâmide, mas logo ignora a visão e decide dormir.

Shalom devolve o objeto de poder ao dono:

- Que Bel-Karrano/Tupã atenda seus pedidos.

- Optcha!- Confirmam os dois.

- Estou à disposição de vocês, meus caros. Há muito que eu os esperava e quando me chamarem para partir, pegamos a estrada. Veem aquele Pampa branco ali? – Ele lhes mostra o automóvel – Aquela máquina é uma extensão de mim mesmo. Vou com ela até o inferno... Pego minha barraca, boto ali atrás e ganho o mundo.

- Podemos ir amanhã? – Pergunta Sofia.

- Sim – responde Pedro. – Para onde e a que horas?

- Nazaré das Farinhas. Lá estará a quarta cigana... Às 09h00 é um bom horário para sairmos daqui.

- Amanhã então, às nove, para Nazaré das Farinhas. Não imaginava que a loira estivesse tão perto. Como sabe que vamos encontrá-la nesse lugar, Sofia?

- Quando estive em Brejões, recebi mensagens da cigana Zenaide e depois outros fatos foram acontecendo que nos levaram a identificar os ciganos e suas localidades.

- Conte-me tudo.

Shalom e Sofia passaram a narrar suas histórias em Brejões e Amargosa, deleitando o velho cigano que os admira com um brilho infantil nos olhos.

No dia seguinte, quando Shalom e Sofia chegam ao acampamento, a tenda de Pedro já está desfeita e arrumada no carro e ele os espera junto a outros ciganos:

- Já estou com meus panos de bunda embrulhados há horas, seus ciganos de merda! – Brinca Pedro e todos riem.

- Não temos culpa se você nos embebedou ontem com seu vinho, bode velho! – Retruca Sofia divertida.

- Vamos então – diz Shalom.

Os três se despedem de quem fica e deixam o acampamento. Pedro vai na frente com seu carro e Shalom com Sofia o acompanham.

Quando estão prestes a deixar a cidade, no Bairro São Benedito, porém, uma mulher desesperada se atira na frente do carro de Pedro, mas ele freia, amenizando o choque do veículo com a suicida. Ocorre o atropelamento e a vítima cai no chão. Shalom freia a tempo de não bater no carro do amigo.

2 comentários:

  1. Pedro é um escândalo! Amei sua flatulência - nele, tudo é sagrado - e principalmente sua história e formação. Impressionante! Você é definitivamente um louco, Aruanda.

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