quarta-feira, 2 de março de 2011

Sete Ciganos - 47



À noite, é com alegria que os outros descobrem que seus amigos recobraram a consciência. Todos estão na sala, mas os dois continuam deitados:
- Pensei que vocês não resistiriam – fala Morgan. – Aquele duelo foi muito violento.
- Eu até pensei em deixar Pedro ganhar, por caridade – brinca Márcio e os outros riem – mas ele me irritou e aí, fui sem dó nem pena.
- Morri de medo quando você se transformou, feiticeiro – satiriza Pedro. – Quase me borro todo.
Mais gargalhadas se espalham na sala.
- E eu que nunca soube que você tinha esse poder, Márcio – fala Adriane – Quando você se transformou, tomei um grande susto e pensei comigo: pronto. Agora o velhinho está acabado. Mas quando menos esperava, o velhinho também virou bicho e aí me toquei que a parada ia ser dura.
- Engraçado que eu estava inseguro, Pedro – diz Márcio. – E aí, antes de ir e pensando que você não iria de galera – todos riem – combinei com eles que se me acontecesse alguma coisa, que eles te matassem.
- Adriane temeu por Márcio e quando você estava em vantagem, Pedro – diz Morgan – cochichou comigo para a gente te atacar. Eu com um medo triste daquela viagem toda, você detonando o cara ou o bicho – todos gargalham – imagine se eu ia pra cima... Aí dei a desculpa de que Márcio ainda não tinha morrido e que deveríamos obedecer a sua ordem.
- É. E ainda tínhamos nós – fala Gilberto – Se vocês atacassem, a gente não ia deixar barato.
- Aí ia virar chacina! – Fala Márcio divertindo a todos.
- Quando você foi intimar Pedro, Márcio – fala Shalom – te odiei tanto, meu amigo, que quase te matava.
- Eu li nos seus olhos, Shalom – diz Márcio – mas como todo o respeito, Sofia, me apaixonei por seu marido naquele momento.
- Ainda bem que ele não gosta da fruta – fala a cigana com deboche – senão eu tava perdida.
Márcio olha a sala:
- Nunca vi isso aqui tão arrumado, tão limpo... Vocês arrumaram a sala?
- Não só a sala, como algumas coisas da casa – responde Suelen – só não arrumamos tudo porque sabemos que existem coisas que não podíamos mexer. Gostou?
- Não – responde enfezado, chocando Suelen e os outros. – Adorei – descontrai e os outros relaxam. – Vai ser bom mudar. Agradeço aos Deuses por essa guerra que virou paz, mas me preocupo com uma coisa.
- O quê? – Questiona Pedro.
- Tenho um compromisso com entidades pesadas e não posso simplesmente me aposentar como praticante desse tipo de magia sem acertar contas com elas. O que faremos, Mestre Pedro?
- Eu também sou comprometido com elas. Essas forças são nossas aliadas e grandes protetoras. Você não precisa cortar os vínculos com elas. Podemos fazer uma oferenda com sangue coletado em granjas ou matadouros e negociar com elas, pois amam a energia vital e o poder que existe nessa substância. Foi assim que fiz com as minhas e deu certo.
- Então precisamos desde já organizar essa história – diz Márcio. – Não quero deixar nada pendente.
- Primeiro tratem de ficar bons – recomenda Gilberto – Depois pensaremos nisso.
- Como apareceu nessa história, padre? – Pergunta-lhe Márcio.
- Sou filho de Shalom.
- E é padre mesmo?
- Ainda, mas minha história com batina já está com os dias contados.
- Você é bonito como o seu pai.
- Se aquiete, Mestre Márcio – brinca Pedro. – Do jeito que você está não consegue fazer nem um agrado em alguém.
Risos ecoam e a noite segue descontraída.
No terceiro dia, Márcio e Pedro já conseguem se sentar e as feridas estão num processo rápido de cicatrização. Negro não desgruda do dono e do novo amigo. Ambos partilham conhecimentos de magia e da vida e os outros também o fazem entre si.
No quarto dia, Márcio e Pedro já conseguem se levantar e dar algumas passadas. A comunidade decide fazer um mutirão e pintar a casa. Márcio seleciona coisas que não servem mais para jogar fora ou doar. Olga e Timóteo vão visitar Pedro.
Na sala estão Pedro, Márcio, a comunidade e o casal. Olga e Timóteo se sentem desconfortáveis, mas se esforçam para prestar sua solidariedade ao cigano:
- Como tem passado, Pedro? – Pergunta ela.
- Estou melhorando, minha amiga.
- Olga e Timóteo – diz Márcio – eu quero pedir perdão a vocês pelas complicações que causei a suas vidas. Vocês têm toda razão para não gostarem de mim depois do que lhes fiz, mas saibam que estou repensando minha vida. Tudo o que tem acontecido tem me servido de lição. Ter me encontrado com Mestre Pedro me ajudou muito...
- É constrangedor estar aqui em sua casa depois de saber o que você fez contra nós – fala Olga. – Viemos aqui só porque amamos muito nossos amigos ciganos, mas ao chegar aqui e ver esse clima de harmonia entre você e eles, sinto que preciso rever minhas bases sobre o perdão. Afinal você quase matou Pedro e agora os dois estão lado a lado como irmãos. Tudo isso é muito estranho para mim, mas te perdoo. Isso não quer dizer que quero ser sua grande amiga. Para mim ainda é necessário manter certa distância de você, mas te perdoo e espero que use seu poder melhor daqui por diante.
- Muito obrigado, Olga – Márcio agradece. – Para mim isso é uma boa forma de recomeçar minha vida, de reescrever minha história.
- Não tenho mágoas de você, Márcio – fala Timóteo. – Toda a confusão que você armou com aquela louca só serviu para me aproximar mais de minha amada e fortalecer nosso amor.
- O perdão de vocês é um presente para mim. E se algum dia confiarem em mim, contem comigo no que precisarem.
No quinto dia, os convalescentes já conseguem andar por mais tempo e as feridas já estão secas. Continuam a compartilhar aprendizagens e começam a planejar a coleta do material para a oferenda que Márcio fará às entidades que trabalhavam com ele no intuito de fazer magia de forma inescrupulosa.
No sexto dia, ambos estão praticamente curados e vão coletar sangue num matadouro e numa granja. À noite, só eles dois se isolam na mesma encruzilhada em que se enfrentaram como inimigos e fazem a oferenda às entidades, e Márcio renova seu pacto, dizendo para elas que continuará ligado, mas a partir daquele dia, usará sua força de forma mais prudente e construtiva.
Ao nascer do sol do sétimo dia, Indiara e Indira reaparecem na casa de Márcio, saúdam a todos e vão ter um particular com Pedro:
- Viemos nos despedir, meu companheiro – fala Indiara.
- Para onde vão, minhas jóias?
- Já vagamos muito tempo por aqui, pai – fala Indira – Nossa intenção era lhe proteger, não deixá-lo até o momento de você encontrar seus irmãos e honrar seu compromisso mágico. As duas coisas aconteceram e é tempo de irmos embora.
- Sei que precisam ir e lhes sou muito grato por todo apoio que têm me dado durante todo esse tempo. Nosso amor está além da matéria e do espírito. Amo vocês.
- Também o amamos, meu velho – fala Indiara – Até um dia!
- Até, meu amor!
- Te amo, pai!
- Te amo, minha filha.
As duas dão as mãos e vão se afastando. Uma cascata de luz as envolve e elas desaparecem. Uma lágrima rola pelo rosto do cigano e Negro surge fazendo festa para alegrá-lo.
Do lado de fora, Márcio contempla sua casa. Está satisfeito com a limpeza e a beleza que habitam nesse lugar agora:
- Como minha casa está bela!
- Ela reflete o estado do dono – fala Pedro.
- Esses dias têm sido dias de festa para mim, Mestre Pedro. Aprendi a amá-lo e me acostumei com sua presença aqui. Nunca conheci meu pai e minha mãe me jogou num orfanato quando eu tinha dois anos, e sumiu no mundo. Tive que aprender a me virar sozinho e a ser o mais forte para sobreviver. Quando não suportei mais a vida no orfanato, fugi e fui acolhido por Pai Sebastião. Ele era quimbandista, mas me deu um teto e acabou me ensinando o que sabia. Sou muito grato a ele e lembro-me do final triste que teve depois de haver manipulado tanto as forças a seu bel-prazer. Sua chegada em minha vida, cigano, resignificou minha caminhada e em você tive e tenho um outro pai. Sei que sua partida é próxima e isso me angustia – Márcio enxuga os olhos.
Pedro o abraça e olha bem nos seus olhos:
- Eu e você somos um só. Entenda isso de uma vez por todas. Aonde quer que estejamos, meu sangue corre em suas veias e o seu nas minhas. Pai Sebastião, Dalmo, o bruxo cigano que me ensinou magia trevosa, e Miro, o outro bruxo cigano que me trouxe para o equilíbrio, estão conosco para sempre. Nós estamos um no outro para sempre. Eu sou a edição revista e ampliada de Dalmo e Miro. Você é a edição revista e ampliada de Sebastião e de mim mesmo. Jamais nos perderemos.
- Quero lhe encontrar sempre.
- Mesmo quando eu voltar para as estrelas, vamos nos encontrar.
- É verdade que vocês vêm de uma constelação?
- Conta a lenda... Mas afinal, quem de nós aqui nesse planeta não veio de longe, muito longe? Todos estamos de passagem. Há viagens mais longas; outras mais curtas, isso não importa. O que conta é que somos Viajantes do Universo e em cada estada somamos mais amor e sabedoria.
- Te amo, Pedro.
- Te amo, Márcio.
Ambos se abraçam.
Após a última aplicação da água benta, Gilberto comunica sua partida:
- Amanhã retornarei a Brejões. Tenho que falar com o bispo da minha diocese e me preparar para outro ciclo da minha vida.
- Eu lhe sou muito grato por ter salvado minha vida com sua água benta. Tem certeza de que não quer ficar aqui, Gilberto? – Questiona Márcio – Podemos fazer muitas coisas juntos.
Os outros riem.
- Muito obrigado, Márcio, mas eu já tenho para onde ir.
- Vai conosco?! – Pergunta Shalom animado.
- Não, meu pai. Quando joguei com Sofia ela me disse que eu veria num sonho o lugar para onde iria depois que saísse da paróquia. Eu tive o sonho nessa semana.
- Qual é o lugar? – Indaga a cigana.
- São sete lugares: o primeiro que irei será Machu Picchu, no Peru. Passarei um tempo lá e depois partirei para El Moro, nos Estados Unidos; de lá, irei para Chitzen-Itza, no México e dali para Sidney, na Austrália. Então partirei para Sintra, em Portugal, depois para Cairo, no Egito e por fim em Srinagar, na Índia. De lá, não sei o que irá me acontecer. Em cada local sagrado desse, viverei histórias e aprenderei sua cultura, costumes e legados.
Márcio se retira e volta com uma caixa:
- Como lhe devo minha vida, padre Gilberto, me sinto na obrigação de lhe recompensar. Aqui nessa caixa têm jóias que ganhei ou roubei ao longo da minha vida. Não preciso delas. Tome, venda-as e faça dinheiro. A igreja não lhe amparará quando você se desligar dela.
- Márcio,eu não posso aceitar...
- Então também não aceito sua valiosa água benta.
- Aceite, Gilberto – aconselha Pedro – Assim como você partilhou seu tesouro com ele, ele está partilhando o dele com você.
- Aceito.
Gilberto toma a caixa para si e dá um forte abraço em Márcio.
A comunidade faz um grande churrasco em homenagem à partida de Gilberto. Muito vinho, comida e música regam a noite e no final de tudo, o padre cigano pega Márcio pela mão e com ele partilha o leito e o amor.

3 comentários:

  1. Lindo!!!Interessante o fato da recuperação dos feiticeiros durar exatos sete dias. Sete dias - Sete ciganos... Quando a história de Márcio é contada, meu julgamento em relação a ele mudou. Alguém que teve uma infância daquela guardou marcas profundas. Bom que escolheu o melhor caminho!Mais uma vez o número 7: Gilberto vai se aventurar em Sete Cidades do mundo... Gilberto é uma figura interessante: deita-se com Sofia, casa-a com o pai e depois se deita com Márcio. Bem eclético... Tô amando tudo isso! Beijo.

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  2. Ninguém se torna nefasto à toa... Sempre há um algoz.
    Gilberto é a encarnação da liberdade. Ama sem reservas e incondicionalmente.
    Que bom que está gostando, Diana.

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