domingo, 29 de maio de 2011

Sete Ciganos - 73


Mais tarde chegam os avós da noiva, Esmeralda e Martim, e o avô do noivo, Alejandro, cuja esposa é falecida. Outros ciganos vão chegando e a alegria vai tomando conta do ambiente. Com eles, chega o padre Altino, de Feira de Santana, loiro e bonachão, um dos militantes da Pastoral dos Nômades do Brasil.

Embora os noivos já tenham, discretamente, vida sexual ativa, cumprem à noite com o Ritual de Comprovação da Virgindade da Noiva, o que causa grande alegria entre os convivas.
Todos os ciganos estão muito bem vestidos e arrumados com seus melhores adereços. Zenaide cochicha com Sofia:
- Acredita mesmo que minha bisneta é virgem?
- Acho-a muito sensual e fogosa para uma donzela.
- Alguns desses rituais pró-forma me entediam profundamente, minha filha.
- A mim também, Zenaide.

Os noivos são levados pelos pais para o centro do acampamento, onde há um suntuoso altar e o padre Altino à sua espera. Violinos tocam, vapores da noite, dos corpos se misturam, magia solta no ar, Shalom de braços dados com Sofia; Antonio com Sâmia e Pedro ao lado de Zenaide, procura sua mão e ela a aperta carinhosamente.
Safira usa um vestido branco e só um arranjo de flores na cabeça e leva o buquê nas mãos. O noivo também veste branco.
Miro e Cybelle estão emocionados, assim como Miguel e Dara, Martim e Esmeralda e Alejandro, que deseja que a esposa estivesse ao seu lado, nesse momento. Sara busca com seus olhos vivos, os olhos de outro cigano que lhe corresponde e faz sinal para se encontrarem depois. Não sei por que cargas d’águas ela não foi prometida a ninguém.

Finalizado o Rito Cristão, com a benção sobre os noivos, a festa se inicia com música, dança, muita comida e bebida. Os pais dos noivos rasgam suas camisas em comemoração à virgindade comprovada da noiva. Zenaide morre de rir e Cybelle fica sem entender... Coisa de bisavó... Coisa de mãe.
As mulheres se reúnem numa roda e mostram a magia, o encanto e a sensualidade da suas danças ao som das músicas cantadas e tocadas pelos homens.
Safira joga o buquê e quem o pega é sua irmã Sara.
A festa cresce e vai até o amanhecer.

No segundo dia da festa, comem de um enorme bolo feito pelas ciganas. Safira já veste vermelho, simbolizando que já é “mulher”.
Zenaide está com os cinco ciganos se refrescando:
- Quando acabarem estes festejos, será bom irmos dar um passeio na cidade.
- É um lugar mágico! – Exclama Sofia.
- E como! – Ratifica Zenaide – Algum de vocês conhece o menino?
- Não – todos respondem.
- Só por sonho – diz Shalom.
- Talvez o padre Altino possa nos ser útil quando chegarmos a Feira de Santana – fala Zenaide – o pior é que nem sabemos o nome do ciganinho.
- Nós o encontraremos – diz Pedro.
- E depois? – Questiona Antonio.
- Só ele pode nos dizer o que vai acontecer depois – responde Zenaide. – Nossos destinos estão nas mãos de uma criança.
- Isso a assusta? – Pergunta Antonio.
- Absolutamente. Sinto que esse menino é o maior de todos nós juntos. “A esperança da colheita está na semente”.

No terceiro dia da festa, todos comem e bebem o que resta e as famílias e caravanas começam a voltar para os locais de onde vieram, ou tomam novas rotas. Os noivos viajam para curtir a lua-de-mel.
No dia seguinte, a rotina retoma seu curso incólume e Zenaide chama os companheiros para dar um passeio pela cidade.
Seguem Shalom, Sofia, Pedro e Zenaide no carro daquele e Antonio com Sâmia no veículo deste:
- Vou lhes levar em casa de uma amiga minha – diz Zenaide.
- Quem é? – Pergunta Sofia.
- Dona Ernestina. Ela é membro da Irmandade da Boa Morte.
- Aquela da Tradição?! – Indaga Shalom.
- Sim.
Por fim chegam à Rua da Feira e Zenaide manda Shalom estacionar próximo a uma casa rosa e pequena. O outro casal cigano faz o mesmo. Todos saltam e atraem os olhares das pessoas.
Guiados por Zenaide, eles se dirigem à casa de Dona Ernestina. A cigana velha a chama e logo uma senhora negra e vivaz chega à porta e os recebe com um lindo sorriso. Zenaide apresenta seus amigos a Ernestina, eles trocam cumprimentos calorosos e são convidados a entrar.
Sentam-se na varanda do quintal e ela lhes serve cerveja e acende um charuto:
- A que devo a honra dessa visita tão ilustre, cigana Zenaide? Estes são os seus amigos de longe?
- Finalmente, minha amiga. Eles chegaram. Agora falta só o menino.
- Agora é moleza. Daqui a pouco vocês encontram o erê e tomam o destino que lhes espera.
- Zenaide nos disse que a senhora faz parte da Irmandade... – Fala Sâmia.
- Minha tataravó fez, cigana Sâmia, minha bisa também, minha avó, minha mãe e agora eu. De geração em geração nossa família honra a Irmandade.
- Que memória excelente! Já gravou meu nome!
- Posso ser velha, mas não sou demente – todos riem, inclusive Ernestina.
- Perdoe-me... – Sâmia fica encabulada – Não foi minha intenção...
- Oxente, menina! Eu só tô mangando de você. A coisa mais preciosa que um velho pode ter, além do presente, é a memória e a sabedoria do que viu, ouviu, sentiu e aprendeu. Isso é bom para os que estão vindo continuar a história.
- A senhora tem filhos?
- Não, Shalom. Mas minha irmã, que também faz parte, tem e a menina já está tomando gosto pela Irmandade.
- Quando tudo começou, Dona Ernestina?
- Cigana Sofia, vamos começar do começo:Quando um tal de Martim Afonso de Sousa chegou à Bahia, tinha a intenção de desenvolver a cultura da cana por estas bandas. Aí com a permissão do rei, concedeu um bocado de sesmarias e um monte de gente, inclusive a um certo Paulo Dias Adorno, que ficou com a sesmaria que se situava à margem esquerda do Paraguaçu e iniciou a cultura do açúcar por aqui, onde era fácil para os barcos aportarem. Logo construíram a capela de Nossa Senhora da Ajuda, e aí a população foi crescendo e se formando. Em 1693, o município foi criado com o nome de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira e só em 1837, que foi elevada à categoria de cidade. Alguma dúvida?
- N... Não – respondem os demais impressionados com o alto nível de informação da senhora .
- E a Irmandade?! – Sofia insiste.
- Ah, minha filha! – Ernestina ri, olhando para o alto e pensando no passado – Isso tem história...
- Quando acontece?
- Sempre na segunda quinzena de agosto. Muitos dizem que agosto é o mês do desgosto, mas para mim, ainda que tenhamos certa herança de dor, é um mês de muita alegria por eu estar sempre cumprindo com a tradição.
- Quando começou, Dona Ernestina? – Indaga Sofia.
- Há muito tempo... Desde que os abolicionistas começaram a incomodar a ordem social da época. É uma festa triste e alegre, viu. Triste porque a gente sempre lembra das dores que nossos ancestrais passaram como escravos. Ninguém foi feito para ser escravo... – Ernestina se emociona – mas é alegre porque a gente agradece a Nossa Senhora pela liberdade conseguida a ferro e fogo, com sangue, suor e lágrima.
- E a senhora pode nos falar sobre os rituais? – Pergunta Pedro.
- Senhora é sua vó. Me chame de você, que tu tem idade pra ser meu pai – todos riem. – Pois é, Pedro, tem muitos rituais em torno da festa que culminam com a ascensão da Mãe de Jesus. O povo conta que lá pelos idos de 1800, antes da abolição, as negras faziam uma parte secreta que não incluía nada de católico, mas a coisa foi se abrindo e com o tempo, foi mudando, né? Como tudo nessa vida – ela fuma o charuto.
- Só participam mulheres? – Pergunta Antonio.
- Sim, senhor, cigano Antonio, mas nenhuma é pro seu bico – ela dá um tapinha em Sâmia, sente que os dois são casados. Todos riem. – São todas de meia-idade e descendentes dos escravos. Nós nos dedicamos de corpo e alma na realização da festa a cada ano. E a gente faz isso para cumprir a obrigação a fim de pagar a promessa feita pelos nossos ancestrais.
- Que promessa? – Pergunta Sâmia.
Zenaide examina toda a cena calada e satisfeita.
- Os jejes trouxeram a devoção de Salvador pra cá. Houve o tal do sincretismo, mas antes mesmo dele, já tinha a festa que os antigos faziam em prol da liberdade. Aí prometeram que iam continuar fazendo se a liberdade viesse quando as coisas da igreja entraram no jogo... Faziam as novenas, o samba e a coisa dura até hoje. Tudo muito fino, muito rico. Usamos nossas melhores roupas e jóias. Porque meu povo, meus amigos, nunca foi nem é, nem será miserável. Meu povo é rico!
- Tudo isso é muito interessante! – Diz Shalom.
- É, cigano Shalom. Seu povo também veio parar aqui nessas terras. Nós tínhamos uma pátria, mas viemos em cativeiro. Vocês não tinham pátria e chegaram em liberdade.
- Mas Hitler perseguiu e matou muitos dos nossos e muita gente ainda tem preconceito com relação a nós por causa de alguns que aprontaram e aprontam. Não podem generalizar.
- Tem preto bom e preto mau – fala Ernestina – tem branco bom e branco mau; tem índio bom e índio mau; tem cigano bom, tem cigano mau e a humanidade é doida mesmo, meu filho. Adora se basear na parte podre para tirar seus julgamentos.
- Queria tanto estar aqui na época da festa!... – Deseja Sofia, sabendo da possibilidade remota de isto acontecer.
- Fique triste não, menina. Tem tanta festa aqui que a gente cansa... Óia, em outubro é a de Nossa Senhora do Rosário; a Quaresma também é muito bonita, especialmente a queima de Judas. O mais engraçado é que ninguém olha o Judas que cada um tem dentro de si. Esse é o pior!... Tem a festa do Divino, a de Corpus Christi e depois da nossa, acho que São João é a melhor. Faço licor, faço canjica, pamonha, bolo, cozinho amendoim e asso milho na fogueira. Ai! É bom demais! Dia 24 de junho tem o cortejo do Caboclo, que é a coisa mais linda de se vê e dia 25 a gente comemora a Independência do Município. Em setembro é a vez dos meninos, tem é muito caruru pra Cosme e Damião. Eu como que me lavo... – todos riem. – e em novembro, é a festa da Ajuda. Como você vê, o que não falta é festa.
- Estou chateada com você porque não foi ao casamento de Safira – queixa-se Zenaide.
- Me perdoe, cigana Zenaide. Tava com uma dor nas pernas e na coluna que não me aguentava.
- E passou o quê? Tá tomando alguma coisa?
- Tô passando óleo de arnica e tô sentindo uma melhorazinha.
A conversa segue com amenidades e por fim Ernestina convida todos para almoçarem com ela. Serve uma boa feijoada, cerveja, refrigerante e como sobremesa, uma deliciosa ambrosia.
Os ciganos se despedem da senhora empapuçados.
Zenaide a abraça e ela pergunta baixinho:
- Já sabe quando vai?
- Quando Bel-Karrano permitir.
- Mas vamos nos ver antes...
- É claro! Não pense que ficará livre de mim tão fácil.
- Nem você de mim.
Beijam-se e os ciganos se vão.

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