quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sete Ciganos 16


O mês passa e cada um vai vivendo sua história.
Irmã Vera vai para a Ilha de Itaparica a fim de descansar um pouco e tratar os nervos.
Com a permissão de Margarida, Sofia passa a atender pessoas em casa dela e ganha mais admiradores de ambos os sexos.
O velho Joventino começa a se afastar mais da barraca, à proporção que Orlando vai assumindo a mesma.
Eulália arrasta o marido para as serestas e canta em cada local que chega, tornando-se uma figura noturna marcante onde quer que haja uma cantoria.
Padre Gilberto se torna mais próximo de todos eles, especialmente de Sofia, com quem até joga cartas e todos vão se agregando entre si, formando uma grande família.
Certa noite,vão para a seresta, Joventino, Eulália, Margarida, Orlando e Sofia. Sentam-se, tomam cerveja e comem tira-gosto. Até que o seresteiro convida Eulália para cantar e ela vai para o palco. Nesse momento o padre Gilberto chega e se junta aos outros na mesa. Sofia se sente muito feliz na presença dele... E a recíproca é verdadeira.
Eulália canta “Negue” e muitos casais começam a dançar. Sofia percebe em Orlando uma grande vontade de chamar Margarida para dançar, mas tem receio. Vê que Margarida deseja ser convidada por ele e tem vergonha de convidá-lo.
Sofia chega ao ouvido dela e diz:
- Hora de agir! Convide-o.
- Mas Sofia, é o cavalheiro que...
- Deixe de bobagem! Chame o homem para dançar.
- Or... Orlando? – Fala Margarida.
- Sim?!
- Quer dançar comigo?
- Quero sim.
Ele se levanta, pega em sua mão, ambos vão para a pista e começam a dançar:
Sofia pisca o olho para Eulália e mostra o casal. A cantora corresponde a piscadela e sorri. Nessa troca de sinais a cumplicidade de ambas é mais do que evidente. Não precisam falar para se entender.
A música corre solta e nos movimentos da dança, a intimidade se intensifica e carícias sutis acontecem. O desejo vai se instalando em cada célula e os movimentos ficam cada vez mais leves. Eulália canta uma, duas, três músicas e inicia “Eu sei que vou te amar.”
Depois, enquanto os músicos fazem o solo, ela diz:
- Aproveitem o instante, meus amigos, pois ele pode ser o único que o destino está lhes dando de presente para que vocês possam mudar completamente suas vidas.
Orlando aperta Margarida mais forte. Ela o encara sedenta:
- Não aguento mais.
Margarida agarra Orlando e ambos se beijam com sofreguidão, arrancando palmas da plateia.
Nessa noite, Sofia dorme em casa de Joventino e Eulália.
Orlando dorme com Margarida e ela é iniciada no amor.
Gilberto, na solidão da casa paroquial, questiona sua vida, suas escolhas, seus medos e ideias. Sofia não lhe sai da cabeça.
Pela manhã, na cama, Margarida e Orlando estão abraçados sob os lençóis:
- Pensei que jamais teria coragem de me abrir novamente para o amor – diz o homem.
- Pensei que jamais iria ser amada por um homem – fala a mulher.
- Quer casar comigo?
- Já?!
- Quer?
- Quero.
- “Eu sei que vou te amar”.
- “Por toda a minha vida”.
No mês seguinte, Margarida e Orlando se casam e dão uma festa simples e animada em casa dos pais dele. Eulália faz um churrasco delicioso, os seresteiros tomam conta do quintal e a alegria contagia.
Num dado momento, Sofia sente um frio estranho. Uma melancolia toma conta do seu ser, depois uma inquietação. Ela sai do quintal e vai para frente da casa. Margarida e Eulália percebem seu movimento e trocam olhares.
Sofia abre a porta e o vento sopra, contando-lhe segredos e dizendo-lhe que está chegando a hora de partir. Ela começa a chorar e as duas amigas chegam e vêem o sopro estranho que varre o pó da rua e agita as folhas. Abraçam-na e ficam tristes:
- É o sinal, Sofia? – Pergunta Margarida.
- É sim. Está chegando a hora.
- Que pena!
As três permanecem abraçadas até o vento seguir seu curso e nada mais soprar naquela rua.
No dia seguinte, Sofia reúne os amigos em casa de Eulália:
- Como vocês já sabiam, desde o início, estou aqui de passagem e amanhã estarei “levantando acampamento” e indo para Amargosa. Quero dizer que foi muito bom conhecer todos vocês e aprender, com cada um, novas formas de ver a vida.
Joventino se emociona.
- Embora a vida errante seja a que escolhi até agora, saibam que os levarei em meu coração aonde quer que eu vá. Tenho seus telefones, sei onde moram e por isso não me perderei de vocês.
- Informe-nos sempre da sua localidade – pede Margarida chorando.
Sofia se comove:
- Para mim a tristeza de saber que você vai embora é como a de perder uma filha – fala Joventino. - O bom é que dessa vez, a morte não será a razão da ausência.
Sofia abraça o velho e os dois choram. Os demais não seguram a emoção
- Sentirei muito sua falta, cigana – diz Eulália. – Mas sei que deve seguir seu destino. Por lhe querer bem, sei que o melhor a fazer é deixá-la ir, sem fazer resistência. Afinal, essa é sua escolha.
- Você tem o dom de chegar na vida da gente e nos virar de ponta a cabeça, Sofia – fala Orlando.- À primeira vista, tive restrições a você, mas com a convivência, fui descobrindo a grande amiga, o anjo bom que é você.
- Eu queria tê-la conhecido há mais tempo – diz o padre. – Mas mesmo tendo lhe conhecido às vésperas da sua partida, reconheço que todas as coisas têm sua hora certa para virem à tona. Você é o elo entre mim e uma parte do meu passado que ainda é oculta, mas sei que se tornará explícita... Na hora certa.
- Amo vocês!
- Nós também a amamos – fala Margarida.
Todos se envolvem num só abraço.
Em particular, Joventino e Eulália chamam Sofia:
- Tenho você como uma filha, cigana – declara o velho. – Como um anjo bom que Deus me deu de presente e sei que na sua jornada, você precisa de dinheiro. Por isso tome isso aqui – mostra-lhe um envelope. – Não vou ficar em paz se você recusar minha oferta, porque ela garantirá seu conforto e segurança por algum tempo.
- Mas seu Jove, eu tenho dinheiro. É muita bondade sua, mas não posso aceitar.
- Por favor, cigana, aceite – pede Eulália. – Se fizer esta desfeita com meu Jove, vai partir-lhe o coração e partindo o dele, partirá também o meu.
Sofia aceita a gentileza, pega o envelope e guarda-o na bolsa:
- Parte de mim deseja ficar, mas a outra é mais forte. Obrigada por tudo – ela os abraça.
Mais tarde, Margarida convida a cigana para darem uma volta:
- Para onde vamos, Margô?
- Ao mercado.
- Não vai trabalhar hoje?
- Não. Estou levando meu pedido de demissão. Chega de escravidão, minha amiga. Vou trabalhar com meu marido na barraca e quem sabe um dia montaremos nosso próprio mercado...
- Fico muito feliz de vê-la assim, Margarida. Você é uma guerreira.
- Sentirei muito a sua falta, cigana, mas sei que onde quer que estejamos, estaremos unidas por nossa amizade.
- Com certeza.
As duas se vão contentes.
À noite, padre Gilberto oferece um jantar de despedida à amiga cigana. Joventino e família comparecem ao evento. Como sempre, a alegria reina nos corações e mentes de todos.
Num dado momento, Sofia se afasta para ver o quintal da casa e o vigário a acompanha:
- A que horas pretende partir amanhã?
- Bem cedo.
- Posso te pedir uma coisa?
- Peça, Gilberto.
- Um beijo...
- Padre?!
- Antes de eu ser um padre, sou um homem, sou um cigano. Há muito tempo que não faço isso, cigana, e minha alma é livre e sobretudo anti-celibatária.
Sofia sorri divertida, envolve o sacerdote num abraço suave e suas bocas se unem num ósculo ardente e cheio de desejo.
- Se concordasse em casar comigo, eu deixaria a batina.
- Vá devagar, amigo. Não tenho a menor disposição para casar. Você é um homem interessante, mas também não vejo no seu íntimo ainda a vontade de deixar o sacerdócio. Você sabe que tem uma missão importante no papel que ocupa e que futuramente poderá representar a ala que libertará a igreja de tantas asneiras criadas ao longo da história; porém, nada nos impede de darmos vazão a este desejo, a esta paixão que aflora em nós, nesse momento, e partilharmos da sua cama... hoje.
- Eu ficaria muito feliz se isso acontecesse.
- Eu também.
Ao retornarem à sala, no meio das conversas, a cigana diz a Margarida que pernoitará na casa paroquial, pois cedo, no dia seguinte, o pároco a levará à rodoviária.
Embora as pessoas estranhem o fato, não ousam questionar, pois Orlando também poderia fazê-lo se ela fosse dormir na casa deles, mas como padre Gilberto lhes contou também sua história, preferem considerar que isso é “coisa de cigano”.
Findada a comemoração, Orlando e Margarida vão deixar os velhos em casa e são seguidos pelo padre e a cigana.
Ao despedir-se dela, Eulália lhe diz no ouvido:
- Trate bem o vigário, cigana.
As duas se olham, piscam o olho e sorriem cúmplices.
Sofia se despede do velho e vai à casa de Margarida e Orlando pegar suar coisas.
Feito isso, despede-se do casal e retorna, com Gilberto, à casa dele.
Com paixão e alma, o casal cigano se entrega sobre os alvos lençóis da cama.
Amanhece.

Padre Gilberto passa a mão ao lado da cama julgando que iria abraçar a amante, porém ela não está mais lá, e sim uma rosa vermelha.
O homem beija a flor e sorri agradecido:
- Com o vento ela chegou, com o vento ela partiu.
Ao longe, na boleia de uma caminhão, Sofia ruma para mais uma aventura e se lembra, cheia de gozo, da noite passada em que viveu momentos deliciosos com um sacerdote cigano.

2 comentários:

  1. Estou em lágrimas... Coisa fantástica, Aruanda!

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  2. Ahh Coisas que só mesmo uma rosa vermelha pode traduzir...Opctha!!!

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