sexta-feira, 8 de abril de 2011

Sequestro Existencial



Ele está amarrado a uma cadeira e tem um homem com uma arma apontada para sua cabeça:
- Por que não acaba com isso de uma vez? – Pergunta a vítima impaciente – Já estamos aqui há horas e tudo o que você tem a fazer é apertar esse maldito gatilho e me mandar dessa para uma melhor. Já te disse que não tenho dinheiro e ninguém, ninguém da minha família e do meu ciclo de amizades tem dinheiro para pagar o que você está pedindo.
- Se você tem pressa para morrer, eu não tenho nenhuma para te matar. Não tenho nada pra fazer mesmo... Vou ficar aqui botando pressão e testando seus limites. Vamos ver até quando você é capaz de resistir. Até quando você consegue não entrar em pânico.
- Torturinha chata essa, viu? Por que você escolheu logo a mim para sequestrar?
- Era o mais disponível.
- Como assim? Qual é o critério usado? É meu tipo físico? Meu semblante? Eu pareço com seu pai?
- Nem sei quem é meu pai.
- Ele te abandonou...
- Cala a boca! Senão te estouro os miolos.
- Oba! É bom que termina logo essa merda...
O sequestrador  lhe dá uma coronhada com o cano da arma e ele desmaia.
Tempos depois ele acorda com a cabeça doendo:
- Porra, bicho! Pegou pesado.
- Eu mandei você calar a boca. Não me obedeceu. Tirou onda. Onde já se viu alguém que está na posição em que você está, tirar onda? Vamos deixar uma coisa bem clara: o sequestrador aqui sou eu e o sequestrado é você. Eu aqui dito as normas e você obedece, falou?
- Tudo bem, Fidel! Definidas as nossas posições hierárquicas, fica bem mais fácil para ambos nos posicionarmos nesse jogo de poder no qual você dita as ordens e eu as cumpro.
- É isso aí.
- Minha cabeça está doendo.
- Problema seu.
- Você me agrediu.
- Você me provocou. Se tivesse ficado calado, eu não tinha te batido.
- Me perdoe.
- Hum!
- Tem café?
- Vou passar um. Gosta de forte ou fraco?
- Forte.
- Igual a mim.
Algum tempo depois, o sequestrador libera uma mão do sequestrado para que este possa tomar o café:
- Tá bom?
- Tá ótimo!
- Sabe com o que não me conformo?
- Não.
- Se eu estivesse na mesma situação que você, mesmo tendo amigos mais pobres que os seus, mesmo tendo uma família fodida, gente que até passa fome, todo mundo ia se coligar e levantar a grana pra me tirar do cativeiro.
O sequestrado o encara tristemente e chora.
- Qual é?
- Você falou uma verdade insuportável! Sou um homem solitário. Minha família... Convivo tão pouco com essa gente... Meus amigos... Quais são realmente. É foda você estar num cativeiro diante do seu sequestrador e constatar que ele é a pessoa com quem você teve maior intimidade em toda sua vida.
- Por isso que você dá valor nenhum a sua vida. Por isso me pediu pra eu te matar logo.
- Não há sentido para mim em viver.
- Eu não te invejo.
- Sorte sua... E aí, vai fazer o que comigo?
- Não sei ainda. Se ninguém te quer, porque vou te querer? Se eu te soltar, você vai mandar me prender. Se eu der um fim em você... Porra! Você é tão sem importância, que nem vai me dar a emoção de te apagar, saca?
- Me matou agora.
- Foi mal.
- Arranje algum trabalho para mim.
- Rapaz, isso é um sequestro; não uma agência de emprego. Você tá desempregado, é?
- Há uma semana.
- Por que, no meio de tantos, fui escolher você?
- Destino... Carma...
- Besteira. Velho, enchi de você. Vou te soltar!
- Por quê?!
- Porque sim.
O sequestrador se ergue, pega uma venda e a põe nos olhos do sequestrado. Liberta sua outra mão e seus pés:
- Como se chama? – Pergunta o sequestrado.
- Pode me chamar de Michael.
- Meu nome é Lutero.
- Eu sei. Vi nos seus documentos. Ah! Não costumo fazer isso, mas deixei o seu dinheiro intacto na sua carteira – entrega a certeira a Lutero e este a coloca no bolso da calça jeans.
- Por que fez isso?
- Tem nem graça eu roubar seus R$ 10,00...
- Valeu.
- Não confunda meu desprezo por você com generosidade.
- Não confundi.
- Vamos, Lutero, chega de papo.
Michael o conduz à porta de saída, segurando-lhe o braço:
- Alguém aqui pode nos ver? Você não tem medo?
- Quer ficar calado, por favor?
Michael o conduz por um pequeno corredor que vai dar na cozinha e em seguida, direto na garagem. Ele abre a porta do Fox prata com vidro fumê, introduz Lutero gentilmente, protegendo-o para que ele não bata a cabeça, toma seu lugar de motorista e dá a partida.
Lutero nada mais fala. Sente-se triste. Mais uma vez será abandonado. Nem Michael quer sua companhia. Qual será o nome verdadeiro dele? O que será de si mesmo quando for devolvido à própria vida? Como foram boas estas poucas horas em que esteve em cativeiro! Como se sentiu importante, mas ao mesmo tempo, inútil – ninguém pagaria por seu resgate. Não passa de um fantasma!
- Perdeu a língua?
- Tudo o que falo você me reprime. Melhor que eu fique calado. Para onde estamos indo?
- Vou te deixar no estacionamento do shopping que te peguei.
- Sinto que estamos andando em círculos.
- É para que você não decore o caminho. Não quero vê-lo mais, Lutero.
- Por quê? Por que nos tornamos amigos?
- Você não é meu amigo.
- Problema seu que não me considere como tal. Eu o considero como meu amigo e para isso não preciso da sua aprovação. Você pode ter me aprisionado, me feito refém, me agredido, me humilhado, mas de uma coisa fique certo, Michael, ou seja lá que porra você for: jamais poderá ditar meu modo de sentir ou de pensar. Minha liberdade é interna. Sempre foi, é e será intocada por outrem que não seja eu mesmo. Você me sacaneia por eu ser só, mas quem me garante que você também não seja igual a mim? Talvez você tenha sentido essa agonia em me libertar logo porque ficou profundamente incomodado com nossas semelhanças...
- Cala a boca!
- Calo, não. Se quiser me mate, aí não ouvirá mais minha voz, mas não vou me calar. Se quiser, venha e me silencie.
Michael freia o carro bruscamente. Lutero se assusta:
- Tire a venda, Lutero!
Lutero o faz. Encara Michael e ele está chorando.
- Seu maluco, eu vou te matar agora...
- Eu não vou odiá-lo se você o fizer. Pelo menos vou morrer com a certeza de que alguém, em alguns instantes, se importou comigo. Até hoje eu só passei por essa vida. Nunca vivi de fato. Ter te conhecido foi uma das experiências mais fantásticas que vivi e será ótimo levar comigo essa lembrança.
Michael o encara soluçando, passa o braço em volta do seu pescoço e quando ele pensa que seria enforcado, e começa a se preparar para morrer, percebe que seu antagonista puxa sua cabeça de encontro ao peito e o abraça carinhosamente, afagando seus cabelos, compadecido.
- Meu nome é Michael mesmo. Não sei por que, não consegui forjar um nome pra te dizer. Vamos tomar uma chopp?
Lutero sorri.


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