Depois de muito chorar e ser consolado por Zenaide, o suicida se acalma e Antonio, após uma conversa com Pedro, vai falar com ele:
- Flávio, quero te pedir desculpa por ter-lhe impedido de atingir seu objetivo. Eu não tinha esse direito e vim aqui para negociarmos.
- O quê?
- Sua vida ou sua morte.
- Como assim?!
- Dê-nos uma semana e nós faremos o possível para que você possa recuperar o gosto pela vida. Se dentro de uma semana, você não recuperá-lo, eu mesmo o mato, já que fui eu quem frustrou seus planos de se matar.
- Hum! Como vai me matar?
- Com bala ou com minha adaga... Você escolhe.
- Acho que bala dói menos e mata mais rápido.
- Então usarei bala.
Antonio se afasta e apesar do caráter bizarro da proposta desse cigano misterioso, Flávio a considera interessante, mas também pensa na médica que o tratou tão bem. Aquele instante foi tão mágico, que pareceu ter sido eterno.
No final da tarde, os ciganos levam Flávio para o acampamento e ele é bem acolhido por Miro, seus familiares e demais ciganos.
Á noitinha, ele está deitado na rede da tenda de Zenaide, com ela e os nossos amigos:
- Meu pescoço parou de doer depois que a senhora colocou esse cataplasma, cigana Zenaide – diz Flávio que usa o cataplasma de ervas preparado pela velha.
- Que bom! Como se sente, filho?
- Sinto-me melhor, mas não sei por quanto tempo.
- Por que odeia a vida?
- É uma longa história...
- Temos a eternidade para ouví-lo – fala Pedro.
Flávio sorri diante da bondade do velho, respira fundo e diz:
- Eu tinha uma mercearia, uma esposa e um irmão. Era um homem bem-sucedido, bem amado e feliz. Há algum tempo atrás, minha mãe faleceu e meu irmão, que morava com ela na roça, ficou sem eira nem beira, já que meu pai já havia morrido anos atrás. Ele é dez anos mais novo que eu...
- Quantos anos tem? – Pergunta Sofia.
- 35. E aí eu resolvi chamá-lo para morar conosco. Ele começou a me ajudar no comércio e se empenhou nisso, mas queria muito ir estudar em Salvador. Era meu plano mandá-lo para a capital e ajudá-lo, mas aconteceu o pior.
- Que aconteceu? – Pergunta Shalom.
- Eu sempre viajei muito a negócios e quando saía, deixava o estabelecimento sob os cuidados de minha ex-mulher e de Maurício, meu... Nem sei como chamar aquele traste!
“Certo dia, por já haver resolvido tudo o que eu tinha para resolver em Salvador antes do esperado, resolvi voltar para dormir aqui em Cachoeira. Marta e Mauricio só me esperavam retornar no dia seguinte. Quando cheguei em casa, eram já por volta das onze horas. As luzes da casa estavam apagadas, só a do meu quarto acesa. Meti a chave na porta, entrei e ouvi risos no quarto. Quando cheguei lá, tive uma triste surpresa: meu irmão estava trepando com minha mulher.”
- Filhos da Puta! – Fala Antonio revoltado – E você, fez o quê?
- Quebrei tudo o que pude, para não matá-los e os expulsei da minha casa.
- Que aconteceu depois? – Indaga Pedro.
- Eles sumiram no mundo. Nunca mais vi, não sei nem quero saber deles. Fiquei profundamente magoado, me senti traído, me afundei na depressão e no alcoolismo, comecei a fracassar nos negócios e fali... Foi por isso, por não enxergar mais alternativa alguma para ser feliz, que eu quis me matar. Pergunto-me o porquê desse infortúnio e não encontro resposta. O que eu fiz para merecer essa dupla traição? Algumas pessoas espíritas tentaram me consolar falando-me da Lei do Carma, de prováveis equívocos cometidos por mim em vidas passadas, de dívidas que eu pudesse ter com Maurício e Marta, mas nada disso me ajudou. Só fez piorar a situação porque além de vítima, comecei a me sentir culpado e isso fundiu minha cabeça.
- Penso que na altura do campeonato – Zenaide toma um trago de vinho – não interessa saber mais o motivo dessa desgraça, e sim dar a volta por cima e refazer sua vida. Tudo o que colhemos foi por nós plantado, nessa ou noutras vidas, mas quem anda para trás é caranguejo e nós temos é que andar para frente. O que eles fizeram foi sujo, foi feio, mas quem sou eu para julgar? Lá na frente eles colherão os frutos da própria leviandade e ingratidão. O que me importa agora, senhor Flávio, é ajudá-lo. Meu objetivo é fazer com que você reconheça seu poder e renasça das cinzas.
- Agradeço a boa vontade, cigana Zenaide, mas só um milagre me tiraria do fundo do poço, só magia.
- Não faço milagres, Dom Flávio, nem magia.
- Então como espera me ajudar?
- Tenho algumas receitas, duas ou três coisas que me disseram sobre simpatia... Você fará o milagre. Eu só o empurrarei de cima do abismo, para ver se você aprenderá a voar ou se espatifará nas pedras que ficam lá embaixo.
- Estou com milhões de dívidas...
- Eu te empresto um dinheiro – fala Antonio – e você vai duplicá-lo e vai me pagar.
- Por que fará isso por mim, cigano Antonio.
- Porque vendo prata e ouro, porque sou o dono do tesouro e sei que você é dos meus.
- Aceito a ajuda de vocês – diz Flávio com lágrimas nos olhos. – Se ganhei essa nova chance, é porque posso mudar minha vida para algo melhor.
- Muito bem, meu filho! – diz Zenaide emocionada – Hoje à noite, iniciaremos a abertura dos seus caminhos.
- Penso que meus caminhos começaram a se abrir, quando o cigano Antonio salvou minha vida.
Antonio fica feliz com o comentário, pois já estava se sentindo culpado por tê-lo impedido de se matar.
À noite, os seis ciganos e Flávio se reúnem num lugar afastado. Shalom e Antonio fazem uma pequena fogueira e a acende. Os sete se sentam em volta do fogo e o contemplam.
- Você tomará um banho, que segundo contam os antigos, foi ensinado por Maria Madalena, a portadora do Graal.
- Ela realmente casou com Jesus?
- Foi o maior amor da vida dele e teve com ele uma filha, Sara, que é nossa padroeira.
- Há provas concretas disso?
- Sim, e como, por mais que a igreja tenha tentado destruí-las. O poder da Verdade supera qualquer tipo de manipulação e totalitarismo. Vá a Provença, leia os evangelhos gnósticos, leia os apócrifos, pesquise, estude e verá por si mesmo.
- Fale-me de Sara.
- Foi uma mulher fascinante, ou melhor, é, porque vive em nós. Santa Sara transmitiu para a humanidade o verdadeiro legado de Jesus. Ela veio para ratificar a certeza de que o Amor e a Liberdade pregados pelo seu pai nada tinham a ver com culpa e sofrimento. Sara veio para anular a cruz e colocar o sexo, a alegria, o poder pessoal, o prazer da vida e a rebeldia como pilares da salvação. Isso combina muito mais com Amor do que tanta dor enaltecida pelas igrejas que se dizem cristãs.
- Por isso os ciganos a elegeram como padroeira?
- Não fomos nós quem a escolhemos. Ela nos escolheu. Agora vamos trabalhar... Demo-nos as mãos.
Todos fazem o que a cigana pede:
- Repitam comigo: Em nome de Bel-Karrano...
- Em nome de Bel-Karrano... – todos dizem.
- E de Santa Sara Kali.
Todos continuam repetindo...
- Damos por iniciado este ritual, para que haja Luz, Amor, Clareza e Sabedoria na vida de Flávio e que seus caminhos para a vida conjugal e monetária sejam abertos. Que assim seja!
Zenaide se dirige a um caldeirão, que está sobre um banquinho. Ao lado há alguns ingredientes. A lua está cheia e a magia da noite toma conta dos presentes. A cigana olha para a lua e sorri. Sente o poder em si e fica mais bela, mais jovial e cheia de sensualidade. Os demais contemplam sua aura de satisfação e se contagiam com a energia que dela emana.
Em silencio, ela retira sete copos de água de um vaso e os deposita no caldeirão. Depois pega três rosas brancas, beija-as, e começa a despetalá-las, jogando-as na água. Zenaide fecha os olhos e impõe suas mãos sobre o caldeirão, e pronuncia palavras mágicas ininteligíveis.
Em seguida, põe três pitadas de açúcar branco e diz:
- Com a força da cana, adoço sua vida.
Depois adiciona três gotas de essência de Verbena:
- Que o espírito da Verbena renove seu sistema nervoso, preparando-o para uma nova vida.
A deliciosa fragrância exala na noite, inebriando os que presenciam a ciência da feiticeira, que coloca sete cubos de gelo, evocando os Sete Raios.
Por fim, ela põe um pedaço de Cânfora e mexendo no sentido horário, diz:
- Eu expulso a depressão e a desesperança da vida desse jovem, para que ele redescubra o sentido de estar vivo... Dispa-se, Flávio.
Ele fica nu.
- Formemos nosso Círculo de Poder, Irmãos.
Os ciganos dão-se as mãos em volta de Flávio, que fica no centro com o caldeirão.
- Ativem sua magia, ciganos – conclama Zenaide – Faça seu milagre, Flávio!
Um calafrio coletivo percorre todos. Todos sentem uma poderosa vibração. Flávio se banha, da cabeça aos pés, e ao finalizar, solta um brado que contem toda a energia da ressurreição, do ato de reassumir o controle da própria vida, do fato de despertar a força do Guerreiro Interior. Flávio se sente novamente vivo.
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